Os Pais da Igreja e Seu Elevado Conceito de Casamento
Duas votações no Concílio de Niceia (325 d.C.) ressaltaram a devoção dos Pais da Igreja ao casamento. A primeira manteve as relações de casamento para os clérigos,1 a segunda garantiu aos cônjuges sobreviventes o direito de se casar de novo. Embora a última fosse uma indicação clara de sua estima pela instituição, era na realidade um voto de moderação. Tão elevada era a consideração da Igreja pelos votos originais de um casal que figuras proeminentes como Hermas, Justino – o Mártir, e Atenágoras argumentavam que o vínculo sobrevivia à própria morte.2 No final, sua rigidez não foi adotada,3 mas o simples fato de sua consideração demonstrava que o grupo levava muito a sério os votos conjugais. Como um especialista em patrística, Willy Rordorf colocou: “Com relação à concepção de casamentos como uma união total de um casal implicando uma fidelidade sem reservas, há uma concordância unânime entre o Novo Testamento e a Igreja Primitiva.”4
Pode parecer estranho que o Concílio de Niceia, conhecido por afirmar a divindade de Cristo, também tratasse destas questões. Mas não é surpreendente, dado o contexto. De acordo com a lei romana (que era aplicada em todo o Império) o casamento era um contrato privado como qualquer outro – dissolvível por uma ou ambas as partes. “Consequentemente, não era difícil de se obter o divórcio”.5 Assim os líderes da igreja tomaram uma posição contracultural, mesmo em desacordo com as práticas dentro de suas congregações. Quando Crisóstomo pregou sobre o assunto, notou que alguns membros “abaixavam a cabeça envergonhados,” e Ambrósio achou necessário instruir seus leitores a não fazerem uso das leis governamentais de divórcio.6 De fato (e provavelmente com a tolerância do Império em mente), os Pais foram firmes em sua defesa do casamento, que viam tanto como um sacramento (simbolizando o relacionamento de Cristo com a Igreja), como meio de testemunhar do amor constante de Deus pela humanidade.
Os Pais da Igreja discordavam sobre as implicações do adultério para o novo casamento e lutavam com a interpretação de Mateus 19.9 – “qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de infidelidade, e casar com outra, comete adultério” (JFA). Alguns, como Agostinho, proibiam o novo casamento sob quaisquer circunstâncias, e outros, como Crisóstomo, o permitiam quando um dos cônjuges era vítima de adultério.7 O Pastor de Hermas tomou a posição mais rigorosa: se um marido descobrisse que sua mulher adulterara e não se arrependera, poderia “dispensá-la”, mas não se casar novamente.8 Mas Tertuliano afirmava as exceções: “Permanente é o casamento que não é dissolvido justamente; casar-se, portanto, enquanto o matrimônio não for dissolvível, é cometer adultério (…). O divórcio, portanto, quando merecido com justiça, tem até em Cristo um defensor.”9 Ao conceber que o vínculo conjugal poderia ser “dissolvido justamente”, Tertuliano sugeriu “o correlativo direito de casar-se novamente”.10
Naturalmente, este desacordo espelha os debates contemporâneos dentro da Igreja. Não surpreendentemente, aqueles que rejeitam o novo casamento – sem exceção – irão apontar para a forte defesa do casamento pela Igreja primitiva.11 Mas os que defendem a permissão bíblica de se casar de novo – sob certas circunstâncias – alertam-nos de que os Pais não falaram sobre o assunto a uma voz.12
Como, então, podemos entender os Pais da Igreja? Pelo menos eram defensores convictos do casamento na sociedade civil e na cultura na qual o pacto do casamento poderia algumas vezes ser visto como pouco menos que outro contrato legal – não muito diferente dos dias atuais. A Igreja primitiva se agarrou ao o texto bíblico, aplicando-o a todos os aspectos de suas vidas – desde sua doutrina de Cristo, até sua doutrina de casamento. Já que vivemos em uma cultura desejosa de descartar o casamento, abraçar o divórcio e assumir o novo casamento – em todas as circunstâncias – os Pais podem merecer um novo olhar.
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Socrates, Church History from A.D. 305 – 439, in Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd series, vol. 2, eds. Philip Schaff and Henry Wace (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1983), 18. Em outras traduções, veja Church History from A.D. 305 – 439, Book 1, Chapter 11. Tradução livre.
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Como Atenágoras expressou sua convicção: “Pois quem quer que se separe de sua primeira esposa, até mesmo depois dela morta, é de alguma forma um adúltero dissimulado”. Citado por J. P. Arendzen, “Ante-Nicene Interpretations of the Sayings on Divorce,” The Journal of Theological Studies 20 (1919), 231-232. Tradução livre.
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Pat Edwin Harrell, Divorce and Remarriage in the Early Church: A History of Divorce and Remarriage in the Ante-Nicene Church (Austin, TX: R. B. Sweet Company, 1967), 170-171. Tradução livre.
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Willy Rordorf, “Marriage in the New Testament and in the Early Church,” Journal of Ecclesiastical History 20, no. 2 (October, 1969), 203. Tradução livre.
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Harrell, 173. As proibições contra o celibato, naturalmente, eram vistas à luz do “dever sagrado” tanto dos homens e mulheres romanos de procriar, produzindo cidadão para o império.
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Ibid., 174. Harrell notou que embora Crisóstomo e Ambrósio ministraram depois de Niceia, o que era válido para eles era provavelmente válido no tempo anterior ao deles também.
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Rodorf, 204. Rordorf também mostra Agostinho objetando o novo casamento sob quaisquer circunstâncias. Para aqueles Pais da Igreja que o permitiam no caso do adultério, Rordorf cita Orígenes, Basílio, Epifânio, Crisóstomo, Lactantius, Jerônimo, Pelágio (oponente de Agostinho) e Ambrosiaster.
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Citado por J. P. Arendzen, “Ante-Nicene Interpretations of the Sayings on Divorce,” The Journal of Theological Studies 20 (1919), 230. Tradução livre.
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Tertullian, Anti- Marcion, in Ante-Nicene Fathers, vol. 3, ed. Philip Schaff (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986), 405. Em outras traduções veja Against Marcion, Book 4, Capítulo 34. Itálicos acrescentados. Tradução livre.
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Harrell, 179. Harrell cita do mesmo texto de Tertuliano. Embora não afirme explicitamente que Tertuliano nunca mencione o novo casamento, está correto em argumentar que “todo o teor desta passagem sugere que o divórcio e o novo casamento são possíveis sob condições adequadas. Estas palavras de Tertuliano fornecem uma dificuldade extrema para aqueles que estão comprometidos em manter a impossibilidade do divórcio e o correlativo direito de se casar novamente.” Ibid.
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For example, veja William A. Heth, “The Changing Basis for Permitting Remarriage after Divorce for Adultery: The Influence of R. H. Charles,” Trinity Journal 11 (1990), 147: “Pelos primeiros cinco séculos da igreja os escritores cristãos primitivos não interpretavam o ‘divórcio’ pela imoralidade, encontrado em Mateus 19.9, como algo que dissolvesse o casamento.” Tradução livre.
| 12 |
Craig L. Blomberg, “Marriage, Divorce, Remarriage, and Celibacy: An Exegesis of Matthew 19:3-12,” Trinity Journal 11 (1990), 180. Tradução livre.
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